sábado, 16 de abril de 2016

Consciência, Mito e Religião



O homem com seu trabalho, cultura e linguagem constrói um mundo a parte, denominado não natural ou fora da natureza. 
Mas como ele faz isso?
Como ele o obtém?
De onde ele constrói esse mundo?

Partamos do princípio de que para construir seu mundo próprio o homem precisa, entre outras coisas, de situar-se, encontrar-se, ou seja, perceber-se como ser existente e conceber sua consciência:
"Cogito ergo sum"
Ter percepção de existir é o que encaminha o homem em seu mundo construído e em construção. Mas, quantos de nós são levados a percebermos a nós mesmos? (Questão para outra hora)
Estando plenos de nossa consciência partimos em direção ao fantástico mundo do questionamento. Procurando a razão de existirmos, o por quê de aqui estarmos e começamos a dar valor ao intangível. 
Elevando o mundo real ao mundo mítico, como explicação de nossa experiência e existência. Estabelecendo o mito como a construção do cotidiano e instituindo regras morais dentro destes parâmetros míticos.
E nesta instituição acabamos por trocar a nossa consciência individual  pela comunitária
Como assim?
Ao observarmos o contexto de determinada população, de qualquer lugar que seja do planeta, veremos que ela tem costumes e tradições. O recém nascido desta determinada população praticará conforme crescer, muito provavelmente, todos os costumes morais e tradicionais de seus contemporâneos e sua consciência primeira, sobre sua existência, será dentro de sua comunidade. A isso Gusdorf chamou consciência extrínseca, ou seja, que não nasce com o indivíduo mas, é implementada nele enquanto cresce.
Neste contexto surge também, ou melhor dizendo, deste coletivismo nasce o dogmatismo. Dogmatismo esse que é a ingenuidade do mito que é livre de problemáticas pois aceita, tacitamente, o mito e suas prescrições. A adesão ao mito é feita pela , pela crença.






A consciência de si mesmo e a curiosidade de saber os motivos de aqui estarmos nos levaram a construção dos mitos. 
Muitas são as estórias de "criação" do mundo:
Desde um antigo deus egípcio que, ao masturbar-se, criou o universo; passando por índios que carregavam um coco e, ao ouvirem um som saindo dele, abriram-no dando início ao dia e a noite; ou, aquele que até hoje impera, de um deus que construiu o mundo e toda a existência em seis dias.
Todavia o significado de mito, suas aplicações e contextos vão para além do campo religioso.
Podemos dizer que o mito, que gerou as religiões, é inocente. Mas não devemos esquecer que mesmo em nosso tempo, o mito tem vários sentidos e utilidades.
Sim, os mitos ainda são úteis e absorvidos como cultura.
Ora, Hitler não deu vida ao mito da raça perfeita, com os arianos?
Pelé, Edson Arantes do Nascimento, não é o mítico rei do futebol para os brasileiros?
Freud deu, com seu trabalho, contribuição extraordinária com a utilização do mito de Édipo. O mito, portanto, não é "canal" exclusivo dos povos primitivos.
O exemplo mais fácil de mito moderno são os filmes de heróis, que saltaram dos quadrinhos para as telas de cinema. Trazendo consigo tramas, dramas, contextos e sonhos comuns da raça humana. Seu desejo de tecer um mundo fantástico e, quase que, de imortalidade.






Mas, aqui e agora, os mitos aos quais nos atemos são, tão somente, aqueles que surgiram do imaginário de nossos ancestrais e moldaram nossas religiões.
Os antigos, em sua observação de seu contexto, constituíram mitos que explicavam seu mundo. Que eram verdades, e assim se lhes serviam, intuitivas que compunham seu cotidiano e resolviam suas aflições com a dor e, sobretudo, com a morte. Situando o homem no mundo em que vivia e, de forma espontânea, assentando seu lugar em seu contexto. Ou como afirmam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Martins:
"A função do mito não é, primordialmente, explicar a realidade, mas acomodar e tranquilizar o homem em um mundo assustador."
Por isso os primeiros mitos que modelam a construção do cotidiano são sobrenaturais, ou seja, o homem recorrendo aos deuses para aplacar seus medos. Transformando assim o mundo primitivo, e todas as coisas nele, em sagrado e não natural.
E é aí que aparecem os rituais ou, representações dos atos dos deuses no passado. Como bem observa o filósofo romeno Mircea Eliade:
"... uma das funções do mito é fixar modelos exemplares para as atividades humanas... assim o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repetindo nos ritos as ações deles."
E não é incomum, até os dias de hoje, observarmos religiosos repetindo ações que são, antes de tudo, modelos prefixados por seus deuses.






Determinar, dentro do desenvolvimento humano, o ponto onde termina o mito e começa a religião é tarefa árdua e ingrata.

Para tanto Maria Lúcia e Maria Helena distinguem em três fases a formação dos conceitos de o quê são a religião e seus deuses:
A multiplicidade de deuses momentâneos, cuja fonte é a emoção subjetiva e o medo. As forças da nutreza incompreendida, excitações instantâneas: alegria, inteligência, etc;

Descoberta do sentimento de individualidade, dos elementos sagrados e do divino. Toda atividade humana ganha seu deus particular a vigiar o trabalho e a determinar o funcionamento das coisas (estações do ano, plantio, colheita, etc..). Dando a cada prática seu caráter religioso, pois o homem busca a proteção divina para todo novo momento.

Surge o deus pessoal. Fruto do processo histórico que soma o desenvolvimento linguístico ao desaparecimento do deus que, era  apenas para tal modalidade. Passando a ser um nome próprio e ter seu próprio desenvolvimento, conforme suas próprias leis.

Na terceira fase é que vemos surgir as religiões monoteístas, decorrentes de forças morais concentradas no problema do bem e do mal. A natureza perde seu valor mágico e agora é abordada com mais "racionalidade", o divino também abandona seu caráter mágico e passa para a gama do poder da justiça.
Para o filósofo polonês Ernst Cassirer neste momento a busca da justiça supera o sentido ingênuo do mitismo primordial:
"O sentido ético substituiu e suplantou o sentido mágico. A vida inteira do homem se converte numa luta constante pelo amor da justiça."
Para Augusto Comte, filósofo francês e pai do positivismo, a evolução da consciência humana passa por três estados e a maturidade, seu último estado, se dá pelo abandono de todas as formas míticas e religiosas. Esta posição de Comte inferioriza o mito como tentativa fracassada de explicação da realidade e dá luz ao mito da cientificidade:
Crença de que a ciência é a única capaz de dar todas respostas e única forma de saber possível.

O mito é a porta de entrada para todos nós ao mundo humano. Sejam eles mitos obsoletos, ou fantasiosos, ou ainda os sonhos de praticarmos atos heróicos, nos tornarmos famosos ou deixarmos nossa marca na história humana.
Talvez ele faça parte de uma parcela, significativa eu diria, de nosso crescimento como seres dotados de inteligência.

A seguir veremos o abandono dos mitos e o surgimento da filosofia grega.

Referências:
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins;
Sófocles: "A Tragédia de Édipo";
Freud, Sigmund; Eliade, Mircea: "O Sagrado e o Profano"; Strehlow; Cassirer: "Antropologia Filosófica"; Gusdorf; Clastres, Pierre; Barthes, Roland; Comte, Augusto;

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