quinta-feira, 12 de maio de 2016

Do Mito à Razão: A Escrita, A Moeda, A Pólis, As Leis e o Cidadão




Do mundo construído através dos mitos fizemos o mundo humano. De nossa percepção abstrata e de nossa elaboração mental surgiu nosso mundo fora da natureza. 
Mas, como era de se esperar, em algum momento tudo muda, quando o pensamento abstrato vai além da análise ingênua do mundo desconhecido ao nosso redor, todo o mundo humano muda também.
Na Grécia entre os séculos XII e VIII a. C. os mitos eram transmitidos oralmente em praça pública, na forma de cantoria poética, pelos aedos e rapsodos (espécie de cantores e poetas ambulantes). Como a escrita ainda não existia ficou impossível saber a autoria de tais poemas mitológicos. Mas esta não era uma preocupação, no mundo da consciência mítica o que há é o anonimato como expressão do coletivismo.
Contudo, mesmo com certas controvérsias, a "Íliada" e a "Odisséia" são atribuídos a Homero, o qual não se sabe se teria vivido na época em questão ou, se até ele mesmo não seria um personagem mítico.
De papel importante no desenvolvimento didático dos gregos as epopéias, ou poemas épicos, ensinavam o respeito aos deuses, descreviam sua civilização e até davam uma certa concepção ao homem. Dentre essas concepções a que merece uma menção é a noção de "destino" (ainda presente hoje em várias cepas do cristianismo). A ideia de que o homem é preso à Moira (o destino), que é fixo, não muda e que nem os deuses podem mudá-lo. Outras percepções e idéias advindas deste período podem ser encontradas em vários livros, as próprias obras de Homero são de muito proveito neste sentido.
Mas é entre os séculos VIII e VI a. C. que a consciência mítica abre espaço, durante a Era Arcaica, para a consciência racional.







A Era Arcaica traz consigo novidades que mudam a visão do homem sobre si próprio.
Ele conhece a escrita, a moeda, constrói sua pólis e cria suas leis.
Chamado de "milagre grego" por alguns autores a passagem do pensamento mítico ao racional é mais aceito hoje como o resultado de um longo processo evolutivo da cognição e do pensamento humano.
Em grego "Mythos" significa "palavra, o que se diz", logo podemos observar que o mito depende de seu aedo/rapsodo para que permaneça vivo e fixo no tempo pela memória. 
Veja que a Grécia não foi, nem de longe, a primeira nação a produzir escrita. Para os egípcios a escrita é mais um presente dos deuses, ela é mágica. Tanto que a tradução literal para "Hieróglifos" é "sinais divinos", e somente pode ser aprendida pelos reis e sacerdotes. 
Por influência dos fenícios, no século VIII a. C. , é que surge, pela primeira vez, a escrita na Grécia e, também pela primeira vez, ela acha-se desligada dos laços com o sobrenatural ou religioso. A escrita grega ainda traz consigo a vantagem de ser divulgada em praça pública, aos olhos de todos, e não mais em rituais mágicos reservados aos detentores do poder. Outra vantagem é independência do ser vivo que a carregue como único conhecedor, para discursar ou ditar como poema. A escrita aumenta a abstração da palavra, sua reflexibilidade e o poder de mudança no pensamento. 
A moeda grega surge como solução do problema de como substituir dos valores aristocráticos, baseados em possessão de terras e de rebanhos. Depois de várias conquistas e acordos a classe de ricos comerciantes facilita seus negócios com a moeda. A moeda é uma revolução, pois é uma convenção humana, através da abstração do valor que lhe prestamos.
Diferentemente do que fizeram Hamurábi, ou Moisés, com seus conjuntos de leis com inspiração divina, Dracón (séc VII a. C.), Solón e Clístenes (séc VI a. C.) codificam suas leis escritas e, pela primeira vez, livres do cunho religioso, as leis são comuns a todos, de maneira racional e sujeitas à discussão e modificação. As práticas tribais são abandonadas e uma nova organização, não mais baseadas na consangüinidade, mas observadas através de uma organização administrativa, é instaurada.
É quando, em um culminar sensacional, nasce a pólis e, por consequência, o cidadão. Para Jean-Pierre Vernant, pensador francês, o nascimento da pólis é decisivo para a vida do homem:
"... marca um começo, uma verdadeira invenção; por ela, a vida social e as relações entre os homens tomam uma nova forma, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos."
A pólis é a autonomia da palavra, não mágica ou dada pelos deuses mas, comum a todos, palavra humana de conflito, discussão e argumentação. Debate que gera a política, libertando o homem dos desígnios divinos.






Mas não é na pólis, vê-se uma ironia incrível, que a filosofia surge. 
É nas colônias gregas, a Jônia, na metade sul da costa ocidental da Ásia Menor , e na Magna Grécia, ao sul da península itálica e Sicília, é que assiste ao despontar da  filosofia. 
Como a divisão filosófica centraliza-se na figura de Sócrates temos, por volta do século VI a. C. , o surgimentos dos primeiros filósofos ou os "pré socráticos":
Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito e Empédocles da Jônia;
Pitágoras da Itálica;
Xenófanes, Parmênides e Zenão da Eleática; 
Leucipo e Demócrito da Atomista.
Seus escritos já desapareceram, restando raríssimos pedaços de textos e citações de filósofos posteriores. Porém sabe-se que suas preocupações os levaram a elaboração de uma cosmologia, procurando uma explicação de racionalidade para o universo, e não mais uma cosmogonia, ou seja, divina ou mítica.
Mesmo que utilizando-se de "idéias" ainda permeadas no mito, usando, por exemplo, uma continuidade das estruturas de explicação, os pré socráticos evocam a discussão. Enquanto o mito é inquestionável e inflexível, a filosofia é a problemática e, portanto, convida a reflexão, rejeitando o sobrenatural e a intervenção divina na explicação dos fenômenos. Deixando a natureza dessacralizada, ou não mais sagrada, e inaugurando o pensamento positivo.
Para o pensador britânico Francis Conford a filosofia é uma mutação mental vinculada à outras transformações: a escrita, a moeda, o cidadão, a pólis e as instituições políticas.
Sendo a filosofia, portanto e para tanto, filha do desenvolvimento natural da vida humana.

A seguir Sócrates e suas definições filosóficas.

Referências:
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins
Pereira, Rocha; "Estudos de História da Cultura Clássica"
Vernant, Jean-Pierre; "As Origens do Pensamento Grego" "Mito e Pensamento Entre os Gregos"
G. Bornheim, Apub; "Os Filósofos Pré Socráticos"
Todos os direitos reservados aos autores.
Este blog apenas traz a discussão temas filosóficos, utilizando estes autores como referências.

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